De onde vem a necessidade da dualidade?

A moeda tem duas faces. Sempre


O texto abaixo foi escrito por um gnóstico. Reconheço minha ignorância a respeito da Gnose, filosofia da qual conheço apenas alguns pontos, mas gostei tanto do que ele escreveu sobre a dualidade que decidi reproduzi-lo. Minha única restrição é a respeito de "o certo" e "o errado".

Tudo bem, estamos nos domínios da dualidade e toda moeda sempre tem duas faces, mas não acredito que haja erro no Universo. Por acaso, Deus erra? Existe acaso?

Não é através de erros sucessivos que aprenderemos "o certo". Além do mais, o que é certo? O que é errado? Quem decide o que é um e o que é outro? Nossa mente? Limitada e construída apenas para perceber o que aconteceu (no passado)? Acredito que a diferença entre os dois é a mesma que existe entre cara e coroa: todos esses conceitos não passam de pontos de vista diferentes (e mutáveis de pessoa a pessoa, dependendo do conjunto, igualmente mutável, de crenças de cada um).

No mais, também acredito que a dualidade exista para que experienciemos o Ying/Yang para que possamos escolher, conscientemente, qual lado queremos seguir, pois é através da tese e da antítese que temos a síntese.


DE ONDE VEM A NECESSIDADE DA DUALIDADE?
Por Marco Lima

Cá entre nós: a dualidade não é erro ou punição; é necessidade!

Já viram o famosíssimo e belíssimo símbolo do Yin (primeiro ponto, tese) e do Yang (segundo ponto, antítese)? Ele significa: equilíbrio (terceiro ponto, síntese)! Como diria Aristóteles: "o bem está no caminho do meio"! De fato, tudo o que é demais faz mal, e tudo o que é de menos faz mal. É no equilíbrio, da dualidade, que está o bem. Assim se preserva o ser.

De onde vem a necessidade da dualidade? Imagine quem sempre viveu somente na luz, sem nunca ter presenciado o escuro, ele saberia dizer o que é a luz, ou seja, teria consciência, conhecimento (terceiro ponto) acerca da luz? Ora para se compreender ou se perceber o que é de fato a luz é necessário poder compará-la com a ausência de luz, para então se entender realmente o que é a luz, e se dar o devido valor à luz. Imagine quem nunca ficou doente, ele saberia entender o que é saúde, e o valor que tem a saúde? Ou seja, a percepção, o conhecimento, a tomada de consciência, depende da comparação que é permitida pela dualidade. 

Daí também vem a necessidade de se conhecer o bem e o mal (conhecida como "a queda"). Daí vem a necessidade de se "comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal". Pois é assim que se dá o processo de tomada de consciência da alma que brota e que se individualiza, à imagem e semelhança... 

Em Nag Hammadi, no Egito, em 1945, uma parte dos textos encontrados foi chamada de "Evangelho de Tomé", e uma de suas sentenças era: "Disse Jesus: Quem conhece o mundo, achou um cadáver; e quem achou um cadáver, dele não é digno o mundo."

A sentença expressa justamente o lado negativo do desequilíbrio. Procura dizer que quem se volta só para a matéria (mundo/cadáver), se desequilibra, e dessa forma "perde" inclusive o próprio mundo. Ou seja, é se utilizando do denso (matéria) e do sutil (espírito) que se alcança maestria, equilíbrio, que permite, inclusive, que lhe seja digno o "mundo".

Ocorre porém que se voltar apenas para a matéria também é etapa necessária. Pois só se aprende com a liberdade de se poder errar. É errando que se aprende. É assim que Jesus dizia: "amai também os inimigos"; "ofereça a outra face". Ora, isso não parece um contrassenso. Mas, em outras palavras, está-se dizendo: permita que o seu irmão possa aprender e evoluir pela tomada de consciência, o que só se faz por meio da liberdade de errar, tal como ocorreu com você.

Quanto à "queda", existe um texto interessante de Richard Maurice Bucke, no livro “Consciência Cósmica”, que nos faz ver que a descrição da Criação contida no Gênesis, seria na verdade uma descrição simbólica da passagem da "consciência simples do animal" para a "auto-consciência humana" (o que permite o conhecimento do bem e do mal), ou seja, a "queda" seria na verdade uma "ascenção", e, uma necessidade, não uma punição. Texto a seguir:

“(...) Há uma tradição, provavelmente muito antiga, no sentido de que o primeiro ser humano era inocente e feliz até o momento em que comeu do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. E de que, por ter comido desse fruto, tornou-se ele consciente de que estava nu e sentiu vergonha. Além disso, de que então o pecado nasceu no mundo e o senso infeliz do pecado substituiu o sentimento anterior de inocência do ser humano. E de que daí em diante o homem começou a trabalhar e a cobrir seu corpo. Mais estranho ainda - assim nos parece e a história continua - de que, juntamente com essa mudança, veio à mente humana a notável convicção - que nunca mais a deixou, e que tem sido mantida viva pela sua própria vitalidade inerente e pelo ensinamento de todos os verdadeiros (...) poetas - de que aquela “coisa amaldiçoada” que picou o calcanhar do ser humano - aleijando-o, retardando e especialmente tornando seu progresso vacilante e penoso - haveria de ser um dia esmagada e subjugada pelo próprio ser humano, com o emergir, em seu interior, de um Salvador.

[Nosso entendimento dessa tradição/história:] O progenitor do homem era uma criatura animal que caminhava ereta mas que era dotada apenas de consciência simples. Era, como hoje são os animais, incapaz de pecar ou de sentir o que fosse pecar e igualmente incapaz de sentir vergonha (pelo menos no sentido humano). Não tinha nenhum sentimento ou conhecimento de bem e de mal. Nada sabia até então daquilo que chamamos de trabalho e nunca havia trabalhado. Desse estado caiu, ou melhor, ascendeu, para a autoconsciência; seus “olhos” se abriram; tomou consciência de que estava nu, sentiu vergonha, adquiriu o senso do pecado e aprendeu a fazer certas coisas para alcançar certas metas - isto é, aprendeu a trabalhar.

Esta situação perdurou por penosas eras: o senso de pecado continua rondando seu caminho; é pelo suor de sua fronte que ainda come pão; e ainda sente vergonha. Onde está o libertador, o Salvador? Quem é, ou o que é ele? (...)”

*

Ainda cá entre nós: já viram a parábola do filho pródigo? Aquela historinha contada lá no evangelho de Lucas, capítulo 15, a partir do parágrafo 11. Diz-se que aquela historinha conteria simbolicamente a história épica de todos nós, humanidade. Em resumo: o filho que se “desgarrou” (a autoconsciência que surge ao provar o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal), com a aquiescência do pai, foi experimentar a dualidade e, por fim, retorna “coroado” pela sabedoria, sendo recebido com honrarias pelo pai, enquanto o outro filho que não se “desgarrou” (ainda a consciência simples animal), que permaneceu no “paraíso” com o pai, permanece um inexperiente imaturo, incapaz até de compreensão quanto ao retorno do irmão. 

Considerando-se a interpretação da parábola, se foi mesmo um demiurgo quem criou esse nosso mundo como resultado de um erro (vide “Cristo herético de Nag Hammadi”), então devemos render graças ao tal demiurgo, pela excelente oportunidade que nos deu de ascensão a novo patamar, por meio do contato direto com bem e mal, que nos leva ao reconhecimento, por mérito próprio, do valor do bem (equilíbrio).

De vez em quando, ouvimos por aí: “olhe em volta e veja a quantidade de desgraça no mundo, como pode existir um Deus que permita tudo isso?” Mas quem diz isso também sabe que não adianta se fazer a lição no lugar do aluno... Por exemplo, pouco adianta um pai dizer para a criança: “não coloque a mão no fogo, que queima”. A criança só vai mesmo compreender o que é queimar no dia em que experimentar por si mesma a queimadura. Então, porque é mesmo que não pode existir um Deus-Pai que permita “tudo isso”, tal como o pai lá da parábola do filho pródigo, que aquiesceu sem pestanejar a aventura do filho, por reconhecer a necessidade de desenvolvimento do filho?

Mas se Deus existe, porque é que já não nos criou prontos? Ora, seria possível que viéssemos a ter a nossa individualidade já desenvolvida sem que fosse por mérito próprio, a partir da nossa santa inocência/ignorância (que é o que nos leva ao mal, e, por consequência, ao despertar da consciência)? Só se surgíssemos como réplicas, e não como individualidades.

O livre arbítrio para o ignorante é uma necessidade. E experienciado o erro, advindo o aprendizado, a partir daí o livre arbítrio nem é mais necessário. Pois a partir daí não há mais porque errar, no caso específico. Avançou-se em definitivo, com louvor. Prova disso: hoje, com vossa experiência acumulada, você seria capaz de fazer algo deplorável ou hediondo? Ora, somos feitos da mesma substância de quem ainda o faz. A diferença que existe é similar à que existe entre uma criança de Primário e um PhD experimentado. Reencarnação vai ter que entrar nessa fórmula para melhor explicação...

“Ofereça a outra face”, perante o ignorante ofensor, parece contrassenso. Mas o mesmo mestre também ensinou a suplicar “livrai-nos do mal”. Portanto, certamente que o mestre não recomendava omissão diante da ofensa, de quem não “sabe” o que faz. “Ofereça a outra face” faz mais sentido como compreensão e como negação à absurda justiça da “lei de talião”. Parece que Jesus se deixou crucificar, mas o camarada já devia estar em outro nível de entendimento, no nível crístico, da “consciência cósmica” (destino da humanidade, segundo Richard Maurice Bucke).

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