"Aqui não é a África, meu filho. Tem um oceano no meio. Quem quiser viver aqui, tem que saber juntar tudo"
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Alforriado através da Lei Áurea, João de Camargo (1858-1942) foi largado sem eira nem beira até conseguir efetivamente a "liberdade" após alistar-se voluntariamente na Revolução Federalista (1893) por ordem de seu antigo dono. Seguiu sobrevivendo em biscates até sucumbir ao álcool. Após mais um porre como vários outros antes, recebeu o chamado para construir, ao pé de uma cruz, uma igreja para Nosso Senhor do Bonfim.
Baseado no livro "João de Camargo de Sorocaba. O Nascimento de uma Religião", de Carlos de Campos e Adolfo Frioli, Cafundó retrata de forma bem confusa e truncada, a vida de um ex-escravo que tinha uma missão. Após "sofrer" as agruras na carne, recebe um chamado, se julga incapaz, mas vai em frente e ergue, do nada, um local que curou milhares de pessoas e que perdura até hoje, em Sorocaba/SP.
Ao longo do enredo, há representações de vários orixás (Omulu, Nanã Buruquê, Xangô) e entidades (cigano, pomba-gira e exu), visita a pontos de força (Oxalá, Iemanjá, Oxum) e citações a Oxalá , Oxóssi e Ibeji. Praticamente, todo o panteão umbandista. Infelizmente, não há explicações sobre os arquétipos, mas quem tem alguma noção de Umbanda conseguirá captá-los, principalmente, quando exu aparece e diz "se depender de você, eu passaria fome". Na cena seguinte, lá está João fazendo sua oferenda à esquerda.
Quem aparece no chamamento é Monsenhor João Soares. Seus caminhos se cruzaram durante a infestação de febre amarela, no começo do século XX e o filme só mostra dois encontros entre eles, mas, ao ler um pouco de sua biografia, parece que o padre e João trocaram muitas conversas.
Ao pé da pedreira de Xangô, o Monsenhor diz: "Vai, levanta, filho. Tens muita coisa para fazer. Vai construir aqui uma capela em homenagem a Nosso Senhor do Bonfim. E para de olhar para a dentro. Sua vida será ajudar os outros, amenizar a dor e curar as doenças."
Então, tá, né?
E assim foi feito. Infelizmente, a maior parte do filme foca na vida anterior ao erguimento da Igreja, com quase 1 hora. Infelizmente, são dispensados menos de 30 minutos ao curandeiro.
A igreja foi fundada em 1906 e mostra toda a salada que é a religiosidade do Brasil: é uma igreja, tem santos católicos, mas João teve toda sua formação religiosa nos cultos aos orixás na senzala e recebe ordens de "vozes que escuta na sua cabeça". Foi preso 17 vezes por curandeirismo e charlatanismo até registrá-la oficialmente como Associação Espírita e Beneficente Capela do Senhor do Bonfim (1921), assim como todos os terreiros da época, pois as religiões de matrizes africanas eram proibidas e o espiritismo, tolerado.
Uma pena que uma biografia tão rica tenha um filme tão ruim de ver. O livro pode ser encontrado em sebos a preços exorbitantes. Bem que poderia voltar ao catálogo de alguma editora. É uma história que não pode passar em branco e nem ser imortalizada em uma obra tão horrível. Caso queira conhecer um resumo da vida de João de Camargo, recomendo este sítio.
Na data que publico essa resenha, 26/01/2021, o filme pode ser visto no Youtube, aqui, infelizmente, com uma imagem bem ruim.
CAFUNDÓ
(Brasil, 2005)
Direção: Paulo Betti e Clóvis Bueno
Roteiro: Paulo Betti e Clóvis Bueno, baseado no livro "João De Camargo de Sorocaba. O Nascimento de uma Religião", de Carlos de Campos e Adolfo Frioli
Elenco: Lázaro Ramos, Leandro Firmino, Leona Cavalli
Trailer: https://youtu.be/C6viFWVII_I
Sítio Oficial: http://laz.com.br/filmografia/cafundo/
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