Dona Lilica, a benzedeira

Alguém que muito fez sem nada pedir


O texto, abaixo, é apenas 1 dos 41 causos relatados no livro Causos de Umbanda (Vol.1), resenhado aqui. Não tenho certeza se Dona Lilica de fato existiu, mas acredito que sim, perdida em algum rincão do Brasil profundo. Se apenas ao lê-lo sou tomado de uma alegria a ponto de chorar sem conseguir me conter, só imagino se um dia terei o privilégio de encontrar alguém parecido.

Ao causo:

Ao nascer, sua mãe jurava que ela não vingaria. Menina frágil, apática, aos dez anos mais parecia ter sete. Quieta, calma, vivia a cantarolar e gostava de rezar. Era comum vê-la sentada debaixo da goiabeira, nos fundos da casinha humilde onde morava, falando sozinha.

Certo dia, dona Maricota a surpreendeu benzendo uma galinha que fora jogada no valo para morrer porque estava adoentada. A menina tinha um galho de arruda nas mãos. Dona Maricota xingou-a, mas ela, sorrindo, falou:

– Mainha, amanhã Chiquinha vai botar ovo.

Dito e feito. Apesar da tempestade que durara toda a noite, pela manhã a galinha aninhou-se e botou um ovo.

Com a idade lhe enrugando a face e sem importar-se em construir família, Lilica viu seu pai, sua mãe e dois irmãos partirem desta vida. Benzedeira afamada, acomodou-se num rancho que se deteriorava e, acostumada com “companhias” que só ela enxergava, fazia de seu dia um eterno servir. Filas às
vezes se formavam, e ela, sempre a sorrir, tinha um chazinho, uma beberagem, uma reza para todos.

Não raras vezes as mães saíam da missa de batizado de seus rebentos e não voltavam para casa sem antes passar pela casa de dona Lilica para pegar o benzimento das brasas que tirava mau-olhado e quebranto. Até animais ela benzia, e eles se curavam. Buscavam-na para benzer casa, galpão, roça...

Mesmo em noites de geada, ela acendia seu lampião a querosene e saía à procura de ervas para a mãezinha que entrava em trabalho de parto. Sem contar as noites em claro a segurar a mão do agonizante que temia a morte, mas que adquiria forças com dona Lilica ao seu lado.

Mãe de ninguém, pois filhos não tivera, seu coração adotou a vila, a cidade e a roça. Famílias beneficiadas levavam seu nome e suas simpatias para além das fronteiras de seu vilarejo. A idade, no entanto, não a poupou, e, sendo ela avisada pela “imagem” com que estava acostumada a conviver e que julgava ser de Nossa Senhora que sua hora havia chegado, sorriu e disse:

– Desde que para onde eu vá tenha um pé de erva-verde, uma fonte de água e a tua imagem, minha Santa Mãe, pode me levar contigo.

Após dias sem encontrar dona Lilica em casa, os vizinhos resolveram arrombar a porta, e foi grande o susto ao achar seu corpo “dormindo” tranqüilo, já sem vida. Havia poucas pessoas no velório, um monte de terra sobre o corpo e algumas flores da beira da estrada sobre tudo; foi o que restou de dona Lilica aqui na Terra. Nem missa mandaram rezar, pois isso implicaria pagar, e ela não deixara bens.

Do lado espiritual, dona Lilica acordou sentindo-se jovem naquele dia. Havia sol, e tudo era mais bonito. Abriu a janela e, orando aos Céus, pediu ao Pai para que não permitisse que ela fosse ali proibida de benzer. Fechou os olhos e viu-se transportar para um lugar que mais parecia um hospital, onde a dor, o gemido e o mau cheiro imperavam. Perto do portão havia um pé de perfumada erva e, aos pés da Virgem, uma fonte de água cristalina. Uma luz reascendeu a vida em seu olhar, e dona Lilica sabia o serviço a fazer. Levando suas rezas de leito em leito, iluminada pela sabedoria da bondade, ela aliviou naquele local as dores de muitos, por longos anos.

Em seu túmulo, flores renasciam a cada dia, e, em seu casebre, há quem diga ver a imagem da Virgem regando as ervas que crescem a olhos vistos. Procissão de gente humilde se faz para rezar e pedir milagres para a alma de dona Lilica, que durante o dia socorre no plano espiritual e, à noite, desce
para atender aos pedidos de benzimento para as crianças, as casas, os doentes, os animais e as roças.

“Na humildade, na simplicidade e na doação está o verdadeiro milagre. Na fé, na esperança e no amor está a luz que traz à Terra os espíritos iluminados que realizam em nós os milagres que Deus nos permite receber”.

Hoje, dona Lilica, com um galho de erva-cheirosa na orelha, abençoa-vos em nome do Pai, do Filho e da vossa fé. Amém.

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Fonte: SAVISCKI, Leni W. "Causos de Umbanda (Vol 1.)". Ed. do Conhecimento, 2006.
Foto: Dona Odilia Santiago, 94 anos (em 2018), que encontrei por acaso, ao pesquisar a imagem para ilustrar este conto. Vale a pena ler a reportagem que traz um pouco de sua história e de sua labuta como benzedeira.

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